domingo, 10 de fevereiro de 2013

A ESPERA DA AURORA: POR UM CRISTIANISMO PARA O AMANHÃ

A ESPERA DA AURORA: POR UM CRISTIANISMO PARA O AMANHÃ
[JEAN DELUMEAU, EDITORA LOYOLA,  2007]


Por: Telma Mingoni
Preparação e edição de texto: Silvania Silveira     



       O objetivo dessa resenha é o de fazer uma análise crítica sobre o conteúdo do Capítulo III (“Vertiginosa odisséia”) do livro acima intitulado. O estudo de Jean Delumeau é muito rico em abordagens, citações a outros e considerações pertinentes a realidade do cristianismo primitivo e a suposta decadência do atual. Entretanto, escolhemos este capítulo devido aos questionamentos do autor sobre a pertinência científica da rejeição da transcendência formulada pelo neopositivismo. Observamos neste capítulo, que o autor estabelecendo o “estado das coisas” do cristianismo contemporâneo, e, corajosamente, adentra no âmago do enigma do mal, mas, sobretudo, ressalta a realidade da prática do bem pelos cristãos, realidade esta que constantemente é ocultada pela mídia e pelos pensadores.






CONSIDERAÇÕES GERAIS

O livro, A espera da aurora – por um cristianismo para o amanhã, tece considerações e levanta críticas a favor e contrárias ao cristianismo, mais especialmente ao catolicismo. O autor demonstra com riqueza de argumentos a permanência do mistério cristão e a absoluta necessidade de os fundamentos das mensagens cristãs tornarem-se críveis na sociedade secularizada contemporânea. Observa que o cristianismo soube se adaptar às condições mutáveis do tempo, como nenhuma outra religião o soube e, após estabelecer o “estado das coisas” do cristianismo no mundo atual, questiona a pertinência científica da rejeição da transcendência formulada pelo neopositivismo. Corajosamente, o autor entra no âmago do cristianismo e aborda o enigma do mal. Entretanto, ressalta a realidade do bem no cotidiano e critica a mídia e os filósofos por ocultá-la.  Dirige um apelo direto às “autoridades” da Igreja, para que não se fixem “em falsos problemas exegéticos”, mas que estejam “abertos” para construírem uma base ecumênica duradoura. Justifica sua fé com argumentos sólidos, acredita ser possível um entendimento entre as diversas Igrejas Cristãs e, através de um intercâmbio religioso, propagar-se e preservar-se, até “o amanhã”, a mensagem dos evangelhos fundada nos ensinamentos de Jesus.
Enfim, o autor consegue cumprir o objetivo geral do livro.  De fato, podemos crer que as portas do futuro ainda estão abertas para cristãos e não-cristãos, pois, os ensinamentos de Jesus podem ser integrados à atual civilização laica, científica ou técnica. Em sua crença construtivista, Jean Delumeau procura transmitir sua esperança no futuro do cristianismo e se coloca, como tantos cristãos, à espera da aurora, que certamente há de vir.

Capítulo III: “Vertiginosa odisseia!”
         Neste capítulo, o autor apresenta, fundamentalmente, questionamentos sobre a pertinência científica da rejeição da transcendência formulada pelo neopositivismo. Para tanto, ele apresenta, com riqueza de dados científicos, as razões que levam tanto leigos quanto religiosos e a alguns cientistas ao “maravilhamento” diante da complexidade e da grandeza da “Criação” do universo e do homem:
[...] Afirma-se hoje a existência de mil bilhões de galáxias [...] nossa Via Láctea, cujo diâmetro é de aproximadamente 300 mil anos-luz, pode conter bilhões de estrelas que gravitam em torno de seu centro. Nosso sistema solar descreve na galáxia uma trajetória circular em 250 milhões de anos. Milhares de bilhões de cometas gravitam em torno do sol [...] O corpo humano é formado por uma centena de bilhões de células. No núcleo de cada célula 23 pares de cromossomos determinam o conjunto de características de um indivíduo. O cromossomo é uma fita dupla [...] composta de aproximadamente 100 mil moléculas de DNA [...] A pesquisa sobre o sequenciamento do genoma humano [...] mobilizou, durante dez anos, milhares de pesquisadores de seis países diferentes. E isso para estabelecer o ordenamento de uma molécula que, caso fosse desdobrada, mediria 1,8m de comprimento: o DNA humano. O detalhe de nossas moléculas, escreve France Quéré, conta a glória de Deus. (Grifo nosso) (pp. 48-49)
            Referindo-se às considerações do padre Martelet (1997), Delumeau explana: Como não sublinhar também que nosso cérebro é uma ‘maravilha biológica’? Pois uma verdadeira galáxia se aloja sob a abóbada craniana: uma centena de bilhões de neurônios separados uns dos outros por bilionésimos de metro e que se comunicam entre si por meio de ’sinapses’, ou pontos de contato [...] que se estima em um milhão de bilhões o número de sinapses no ‘labirinto neuronial’ do homem adulto. (p. 49)
         Como, pois, não se maravilhar frente aos prodígios que a natureza multiplica cotidianamente desde o infinitamente grande até o infinitamente pequeno? – questiona o autor – são maravilhas tão surpreendentes por sua pequenez quanto as outras por sua extensão. Em concordância com Fr. Quéré, Delumeau pensa que a ciência contemporânea vive uma “vertiginosa odisseia  quando procura se aproximar ao máximo do instante do big bang, quando ela recua incessantemente os limites do universo e quando ela se insinua cada vez mais profundamente no interior do átomo e do genoma. Prevalece, por um lado, a convicção de boa parte das pessoas que “a ciência tirou de Deus a posse de sua criação”; por outro lado, alguns cientistas respondem que “tudo que a ciência parece retirar de Deus ela o dá à sua obra”. Sobre tal afirmação, o autor relembra um versículo dos Salmos que afirma: “os céus contam a glória de Deus”.
         Sobre a “criação e sua origem”, o autor estabelece um contraponto entre a visão da religião e a da ciência. Segundo ele, as teorias da evolução afastam o modelo de “um deus relojoeiro que prevê todas as coisas detalhadamente e constatam que as variações individuais e hereditárias não são necessariamente adaptadas a priori a uma situação ou a um fim particular”. Sobre as narrativas bíblicas da Criação, após as teorias da evolução (que atribuem ao homem uma origem animal), torna-se impossível tomar essas narrativas ao pé da letra. Ademais, o próprio termo “Criação” tornou-se ambíguo. Por outro lado, o ele considera que é possível distinguir os termos “explicação” e “significação. A explicação cabe à ciência enquanto a significação pode ser dada pela religião. Pois bem, o universo começou com o tempo e o tempo faz parte da criação, como o espaço e a matéria também o fazem. Porém, embora a ciência se esforce em voltar ao máximo possível para os primeiros momentos do tempo, chegando a certo ponto, ela se choca com uma barreira insuperável: a ciência não pode dizer nada sobre o aquém ou sobre o que está fora do tempo, conforme a explicação de Delumeau. Assim, ele questiona: “O que impede, então, de pensar em conformidade com a narrativa bíblica que fora do tempo e do espaço da matéria, havia o ‘já estava lá’ de Deus, este sendo a fonte e a origem da criação?”. Na razão do autor, Deus não pode ser visto simplesmente como um oleiro ou um relojoeiro, mas sim como um artista. Deus não é fixado em sua obra, ao contrário, continua a acompanhá-la. “Ele chama, suscita, utiliza as possibilidades abertas”, logo,  “de certa maneira ele pode ser apresentado como advindo a si mesmo”.
Remetendo-se às exposições de B. Sesboué (1999), Delumeau afirma: “A criação, portanto, não está concluída. Ela tem a sua origem em deus, que continua presente e que a dirige rumo a um destino que a ciência não tem a vocação de definir, porque ele permanecerá sempre fora de seu alcance”. Contrária a esta afirmação, Delumeau cita a “visão ateísta” de Jacques Monod (1970): “O universo não estava prenhe de vida, nem a biosfera prenhe do homem. Nosso número saiu no jogo de Monte Carlo. O homem sabe que está sozinho na imensidão indiferente do universo no qual ele emergiu por acaso. Não mais que seu destino, seu dever não está escrito em lugar algum. Ele tem que escolher entre o Reino e as trevas” (p. 56). Ainda a cerca da “criação e sua origem”, Delumeau não poderia deixar de citar Darwin e seus correlatos na teoria do acaso; assim, ele expõe sua crítica:

Apontando para as imperfeições do mundo vivo, Darwin havia salientado as suas “esquisitices” e as soluções estranhas que nenhum Deus racional, segundo ele julgava, teria utilizado. Quinhentos milhões de espécies animais não desapareceram durante os tempos geológicos? Na trilha de Darwin, François Jacob observa que a natureza age como um bricoleur e não como um engenheiro. Ela ‘recupera tudo o que está ao alcance de sua mão, os objetos mais heteróclitos, pedaços de fios de madeira, velhos papelões que eventualmente podem lhe fornecer materiais. [...] Há 65 mil anos, desapareceram definitivamente os grandes répteis da era mesozóica e 75% das espécies então existentes. Essa extinção maciça é atribuída à queda de um meteorito em Yucatán, no México. [...] A catástrofe ecológica que se seguiu teria sido provocada pela poluição atmosférica consecutiva ao impacto do meteorito, talvez agravada por erupções vulcânicas. Belo exemplo, ao que parece, da ação do acaso no desenrolar da história da vida. Essa era, com efeito, a opinião de S.J. Gould (1998), que escrevia: ‘Quem quer que sejamos, devemos nossa existência a uma série de acasos que se produziram na história da vida desde a origem. Para os que pensam que há razões para crer em um plano pre-estabelecido que conduziria necessariamente ao aumento da complexidade e ao aparecimento do homem, digo apenas que os grandes esquemas da história contradizem amplamente essa teoria’. (pp. 56 e 57)

Mas afinal, “o que é o acaso?” - indaga Delumeau refutando as afirmações acima - “diante delas”, observa, “devemos manter a cabeça fria”.[..] “Segundo Einstein, falar de acaso é simplesmente admitir uma ignorância, pois ‘Deus não joga dados’. Além disso, mesmo nos jogos ditos de azar, o acaso permanece limitado. [...] Nos jogos de dados, estes são cubos de seis lados, cada um deles com um número que o distingue dos outros lados. O jogador joga o dado, mas a ‘natureza’ faz o cubo girar”. “Segundo a fórmula de J. Arnould” - continua o autor - “o acaso é a combinação ou o encontro de fenômenos que pertencem a séries independentes na ordem da causalidade”. Desta “fórmula”, pode-se inferir que, por exemplo, a força do vento faz uma telha cair sobre um pedestre que por ali passa, apenas por acaso.            Entretanto, graças a um artigo escrito por um físico e, basicamente ao trecho transcrito pelo autor, pode-se compreender melhor esse fenômeno do acaso: “A descrição completa dos fenômenos flutuantes é frequentemente impossível, há uma grande tentação em se crer que eles estão ligados à desordem e ao acaso. [...] Mas essa desordem pode ser apenas aparente e traduzir nossa incapacidade de discernir a ordem na complexidade”. Após tantas citações e observações sobre as “teorias do acaso”, o autor considera mais didático explanar sobre “uma inteligência em ação no universo”. Assim, ele inicia uma reflexão sobre “o acaso e a necessidade”. A partir daí, tece suas considerações sobre o nascimento da vida, sobre a inteligência que projeta e acompanha a natureza e o homem em seu habitat: “Ela (a vida) pode ser resultado de uma cadeia de coincidências e de uma série de acontecimentos de probabilidade absurdamente pequena? [...] As concordâncias entre os estados físico-químicos do meio terrestre com as múltiplas e estritas condições necessárias ao surgimento da vida são excessivamente numerosas para serem explicadas pelo acaso”. Retoma, aqui, uma conclusão que ele havia apresentado em um de seus livros (Cet que je crois): “... a natureza, que, sob determinados pontos de vista, dá a impressão de ser perdulária, opera de maneira muito econômica a partir de um número limitado de materiais básicos. Por outro lado, ela dá provas de inesgotável engenhosidade quando se trata de combiná-los. ‘Bricolagem cósmica’, garante François Jacob”. (F.Jacob, Le jeu des possibles, 93, op. cit. Delumeau: 2000, p.60)
         Delumeau prossegue afirmado que a vida é inteligente e que muitos acidentes ocorrem durante a reprodução celular. Por exemplo, um filamento pode se romper ou se unir a outros ou os genes se misturarem uns com os outros... “Ora” - ironiza- “os reparos estão previstos por toda uma série de mecanismos e que se um reparo não dá certo outro tipo de reparo tomará seu lugar!” Infere-se daí que a vida é autocriativa e inovadora, porque ela cumpre espontaneamente o seu sistema de forma que jamais havia sido feito antes dela; a vida sintetiza “os elementos por meio dos quais se expressam sua espontaneidade e sua autonomia funcionais”. Então, lança-se outra questão: “É preciso afirmar que, ao fazer isso, ela (a vida) não possui nenhum projeto?” (p. 61). Apoiando-se em Claude Bernard, Delumeau transcreve um trecho de Introduction à l’étude de La medecine expérimentale: “O físico e o químico podem rejeitar toda idéia de causas finais nos fatos que eles observam: enquanto o fisiologista é levado a admitir uma finalidade harmônica e preestabelecida no corpo organizado no qual todas as ações parciais são solidárias e geradoras umas das outras”. (p. 62)
         Jacques Arnould, já citado anteriormente, acrescenta à ideia acima com a  afirmação do biólogo Van Brueke: “No fundo, a finalidade é uma dama sem a qual nenhum biólogo pode viver, mas com a qual ele tem vergonha de andar em público” (p. 62). Concluindo, Delumeau escreve: “O embrião que vai se tornar um bebê no ventre materno e cujas células se diferenciam progressivamente e se agrupam para formar um coração, um cérebro, braços e pernas, não realiza um programa, isto é, um projeto? Não recusemos o bom senso: o olho é feito para ver, e o ouvido para ouvir. Cada um que tire as conclusões que quiser. Mas não é irracional nem contrário à ciência perceber na fonte do universo e através das múltiplas contingências e inflexões que marcaram em seu percurso o rio da vida um projeto global que designa uma meta”. (pp.62-63)
Para encerrar essa “ odisseia” empreendida pelos biofísicos e os defensores das narrativas bíblicas, concordamos com o autor de A espera da aurora, um cristianismo para o amanhã, quando ele levanta mais uma questão: “Por que então não manter a ideia lançada por vários físicos de que as propriedades da matéria são de tal ordem que a vida era uma conseqüência necessária e que as leis às quais está submetido o universo a obrigaram, por meio de erros de percurso e reajustes, a gerar a vida e... o homem?”.

Considerações Finais:
O livro a que nos foi indicado, A espera da aurora, um cristianismo para o amanhã, é rico em dados estatísticos, em citações relevantes de outros estudiosos da religião e cientistas, o que o torna um tanto complexo para nosso parco conhecimento e capacidade de abstração. Assim, a tarefa de resumir ou elaborar uma resenha de todos os onze capítulos e comentar apenas um deles nos foi bastante trabalhosa, difícil mesmo. Por outro lado, esse trabalho trouxe-nos o prazer intelectual de aumentar nosso conhecimento sobre o tema; trouxe-nos a certeza de que, como todo estudioso da teologia, é necessário abrir a mente para outras visões sobre o Cristianismo, sobre as narrativas bíblicas, sobre Deus, sobre Jesus e o Evangelismo, senão a nossa.
Esse livro de Jean Delumeau trouxe-nos, sobretudo, a esperança no futuro do Cristianismo; não uma esperança baseada apenas em uma fé religiosa, alienada e cega, mas fundamentou a esperança que já tínhamos com dados concretos, diríamos, com provas cabais de que o Cristianismo é movimento, é adaptação às condições do tempo e do espaço, como nenhuma outra religião do planeta conseguiu sê-lo.Amparado em razões “sérias”, digo, dados estatísticos, depoimento de mártires perseguidos e violentados, citações científicas, Delumeau procurou demonstrar, neste livro, que “as portas do futuro ainda estão abertas”, e, aos não cristãos, que a mensagem extraída dos ensinamentos de Jesus (transmitidas pelos apóstolos, pelos Evangelhos) pode se integrar tanto à civilização laica quanto aos defensores da ciência ou da técnica. O autor constrói, assim, uma esperança densa, maciça, como quem mobiliza uma multidão de fiéis cristãos a se juntarem em um só pensamento à espera da aurora que, certamente, está para chegar.